
Um homem simples, prático, que não gostava de ser servido e usava o sapato até gastar. Assim o padre Marcial Maçaneiro SCJ, doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, descreve o Papa Francisco, falecido na última segunda-feira (21).
Em entrevista ao Portal iG, padre Maçaneiro descreveu traços da personalidade do argentino, avaliou o legado e falou das expectativas em torno do conclave que vai escolher o sucessor.
Problemas no joelho do Papa
“Antes do papado, Francisco usava transporte público para conversar com as pessoas, parava na esquina para tomar um café. Era uma pessoa de uma certa seze, com seus traços de personalidade peculiares; usava o sapato até gastar, usava calça preta para não ter que pensar em combinar roupa. Ele mesmo gostava de carregar a sua malinha”, conta.
Padre Maçaneiro participou de projetos de formação, em Buenos Aires, promovidos pelo grupo do cardeal Jorge Mario Bergoglio, que anos depois seria eleito Papa e nomeado Francisco.
“Fui alguns anos nesta formação e cheguei a me hospedar na Casa do Clero, com ele a poucos andares abaixo. Mas nunca nos encontramos pessoalmente. Me lembro que ele acordava cedo, antes de todos nós, pegava um ônibus ou um carro, o que fosse mais fácil, e ia para as periferias. Todos falavam desses traços da sua personalidade que o aproximavam muito do povo”, relata.

Durante o papado de Francisco, Padre Maçaneiro esteve algumas vezes no Vaticano, uma delas em 2022, quando o pontífice não pode participar de um jantar no qual o padre estava presente, porque estava em fisioterapia – era o início de um problema que Papa Francisco teve no joelho direito que o deixou em cadeira de rodas por um período.
“Ele mandou um bilhete para cada um se desculpando por não poder descer”, recorda.
Francisco e Bento XVI
Padre Maçaneiro também comparou alguns traços das personalidades de Francisco e do Papa Bento XVI, cujo pontificado começou em 2005, após o falecimento de João Paulo II, e terminou em 2013, com sua renúncia, seguida do conclave que elegeu o sulamericano.
“Francisco era um Papa que saia do protocolo. Os outros Papas que vieram antes dele tinham um pouco disso, mas eram europeus, então, respeitavam mais o protocolo, colocavam limites”, avalia.
O teólogo descreve o Papa Bento XVI como um professor, clássico e também muito tímido.
“Ao contrário do muitos acreditam, Bento não era conservador e também era muito simples. Era mais teólogo. E ganhou essa fama de mais conservador, porque todo o longo pontificado de João Paulo II, ele teve que assumir vários desafios e trabalhos difíceis que eram delegados para ele. Mas quando se tornou Papa, nomeou mulheres para a Comissão Teológica Internacional, publicou obras muitas interessantes, incentiva o diálogo. Não era conservador”, descreve

Comparando com o Papa Francisco, padre Marcial aponta: “O Bento XVI é como um grande professor que deixa um legado, um manual indicando o caminho, e o Papa Francisco é aquele que pega isso e põe em prática”.
O legado de Francisco
Muitas das obras do Papa Francisco e das mudanças na igreja que ele implantou não têm mais volta, independentemente do Papa que será eleito no conclave, segundo o teólogo.
“Muito do que Papa Francisco fez vai ficar na agenda da igreja, sem volta, e isso vai pesar no perfil do próximo Papa”, opina.
Como exemplos, ele cita a reforma administrativa da igreja para agilizar a evangelização.
E diz que Francisco eliminou departamentos antigos, criou novos dicastérios, que são os departamentos e órgãos administrativos da Cúria Romana, criou o banco do Vaticano, mexeu no orçamento, elaborou em documento com novos critérios de escolha de bispos, mudou questões do direito canônico para facilitar o acesso dos católicos aos sacramentos e para que os bispos tivessem mais autonomia na resolução de problemas locais imediatos.
“Outra mudança importante diz respeito à transparência, em duas linhas: na gestão, com prestação de contas, e também a transparência moral, que é uma normatização, tanto canônica quanto mais processual, de prevenção e reparação de abusos envolvendo a igreja. Ele foi ao encontro das vítimas em vários países, reuniu os cardeais e bispos e incentivou todas as instâncias da igreja a produzir documentação, de prevenção e reparação, com protocolos”, enfatiza o padre Marcial.
Outra marca do papado de Francisco, segundo ele, é ter unido o cuidado social com o cuidado ambiental.

“Esses problemas se agravaram muito nos últimos anos. As guerras têm impacto ecológico, assim como a imigração, a perda de acesso à água, a crise alimentar. O Papa visitou o Fundo das Nações Unidas para a Agricultura, fundou o Fundo das Nações Unidas para a Alimentação, em Roma, e visitou mais de 60 países que estão no radar da crise climática e social”, enumerou.
O padre Maçaneiro também citou, na área da educação, o Pacto Educativo Global, projetado pelo Papa Francisco, que já está tocando todas as instituições católicas do mundo, segundo ele.
“O Papa Francisco não faz só diagnóstico, ele faz prognóstico e ajuda a construir futuro”, resume.
A expectativa para a eleição do sucessor
O religioso acredita que o legado do Papa Francisco vai iluminar o perfil do próximo Papa, que poderá ser um perfil mais diplomático, como o do cardeal italiano Pietro Parolin, atual secretário de Estado do Vaticano e vice do Papa, que representa um cenário de continuidade com amadurecimento do legado do Papa Francisco.
Padre Maçaneiro também sugere os perfis do cardeal Jean-Marc Aveline, arcebispo de Marselha, da França, e do cardeal Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana, que representariam a continuidade do legado de Francisco, com avanços e novos frutos, segundo avalia o padre.

Um terceiro cenário apontado pelo teólogo seria a escolha de um papa do oriente. Ele menciona, neste contexto, o cardeal italiano Pierbattista Pizzaballa, eleito patriarca latino de Jerusalém pelo Papa Francisco, que está há mais de 30 anos na terra santa; e o cardeal Luis Antonio Tagle, das Filipinas.
Outro nome que surge como um último cenário, pouco provável, na opinião do padre Maçaneiro, é o cardeal ganês Peter Turkson.
“Acredito mais em um cenário transeuropeu, entre Aveline e Zuppi, que são cardeais de uma postura muito inclusiva, sensível, uma numa linha de estabilidade e outro com uma certa ousadia pastoral. Ou um representante do oriente com o oriente médio. Mas precisamos considerar que o conclave pode confirmar algum destes nomes ou pode surgir algum outro que ninguém cogitou. Pode haver uma surpresa”, adverte.
Cardeais brasileiros
Em relação ao brasileiro Dom Sérgio da Rocha, arcebispo metropolitano da Bahia, que foi presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também apontado por alguns teólogos como candidato à sucessão de Francisco, o padre o descreve como um cardeal de perfil moderado, de comunhão, de diálogo, acessível e muito experiente.
“Ele foi presidente da CNBB, que é praticamente a maior episcopal do mundo. E ele ser cardeal, significa que o Papa o considera e o reconhece. Por outro lado, podemos considerar que o Papa Francisco assumiu ser a voz da Amazônia e colocou lá na Amazônia um ex-secretário-geral da CNBB”, avaliou o padre, se referindo ao cardeal Dom Leonardo Steiner.

Outro nome mencionado pelo padre foi o cardeal Dom Jaime Spengler, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), nomeado em 2024 pelo Papa Francisco.
“Um cardeal firme, ponderado e competente, muito amigo do Papa, que o tinha como consultor nos últimos anos, e franciscano. Ou seja, sai um Francisco e entra um franciscano”, sugeriu. “São vários nomes. Temos a possibilidade de ter um Papa Bento XVII ou João Paulo III ou ainda um Francisco II. Vamos aguardar o conclave”, finalizou o padre Marcial Maçaneiro.