Solidão no cárcere: por que mulheres são mais castigadas que homens com a falta de visitas em presídios


Segundo dados do Sisdepen, elas recebem menos visitas do que os homens. Especialistas dizem que motivos estão ligados a barreiras de gênero e, por isso, elas podem ser mais prejudicadas. Solidão no cárcere: 26% das mulheres presas no Brasil não recebem visitas
Sem qualquer notícia dos filhos há um ano e meio, quando foi presa por furto, Roberta* acredita estar sofrendo uma retaliação da família pelo crime que cometeu. Márcia*, condenada por tráfico, diz que a mãe idosa mora longe e que não a visita há quase três anos por dificuldade para se deslocar. Para Julia*, o impedimento está no bolso: a família não tem condições de viajar para vê-la na cadeia.
As três detentas da Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu, no interior de São Paulo, vivem uma realidade comum a milhares de outras mulheres criminosas. Segundo o Sisdepen, painel de dados sobre o sistema penitenciário, 26% das mulheres presas no Brasil não recebem visitas na cadeia. E, para especialistas, a justificativa é multifatorial.
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Por trás do desamparo das mulheres no cárcere, segundo especialistas ouvidas pelo g1, estão problemas socioeconômicos, questões de estrutura e logística familiar, e represálias sociais que, embora também possam afetar os homens, tendem a ser piores para elas, como afirma a professora de direito penal Fernanda Ifanger, da PUC-Campinas.
“Essas mulheres acabam sendo duplamente punidas quando elas praticam crimes. Porque são punidas por meio das regras do Código Penal, mas existe também uma punição da sociedade, da própria família, que entende que essa mulher não cumpriu com o seu papel de mulher. Isso faz com que a visita das mulheres seja absolutamente escassa”, afirma a professora de direito penal Fernanda Ifanger, da PUC-Campinas.
Mulher presa na Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu
Estevão Mamédio/g1
‘Dia de visita: a solidão da mulher no cárcere’
Na semana do Dia das Mulheres, o g1 publica a série especial “Dia de visita: a solidão da mulher no cárcere”, que aborda as diferentes relações e desafios que elas enfrentam diante o sistema prisional. Ao longo da semana, a série vai mostrar:
O que está por trás do abandono da mulher encarcerada segundo especialistas
Histórias na fila de mulheres que visitam homens em um complexo penitenciário de SP
Dados de visitação para mulheres e homens no sistema penitenciário
O encontro da reportagem, dentro do presídio, com mulheres sem visita há quase 3 anos
Relatos de mulheres que criaram uma rede de apoio e movimentam a economia local no entorno dos presídio
Fatores socioeconômicos e logística familiar
Para entender o que está por trás da solidão da mulher na cadeia, Fernanda diz que é necessário, primeiro, analisar a forma como esse sistema se desenha. Entenda:
1. No Brasil, a população carcerária feminina é minoria, apenas 4,3% do total. Como consequência, o número de estabelecimentos destinados a elas também é menor. São 30,3 mil vagas para elas, contra 457,3 mil para eles. Isso torna mais frequentes as situações em que mulheres condenadas ou à espera de julgamento sejam destinadas a presídios distantes de suas casas.
A especialista lembra que é um direito da pessoa presa, segundo a Lei de Execuções Penais (7.210/1984), ser mantida “em local próximo ao seu meio social e familiar”, mas na prática, com relação às mulheres, isso nem sempre é possível.
2. Do total de mulheres presas no primeiro semestre de 2024, 77% tinham pelo menos um filho. “Muitas familiares, quando essa mulher tem sorte, cuidam desse filho. Mas aí, imagine que a avó está cuidando dessa criança. Ela não tem dinheiro, por exemplo, para ir visitar essa mulher, porque ela já está cuidando do filho”.
Juntos, os dois fatores acabam sendo fonte para os seguintes problemas que acabam dificultando a visitação da detenta:
Locomoção mais cara: considerando que a maioria das pessoas presas são socioeconomicamente vulneráveis, é mais provável que as famílias não tenham condições de viajar para visitá-las em uma cidade distante;
Logística familiar prejudicada: se a maioria das pessoas que visitam são mulheres e se elas estão na condição de guardiãs dos filhos das presas, elas podem encontrar dificuldades para fazer a visita por não ter com quem deixar as crianças ou pela dificuldade de levá-las.
Cometer crimes é romper com o ‘ser mulher’
O fator social também contribui para que as mulheres presas sejam menos visitadas em comparação aos homens. A técnica de enfermagem Roberta, citada no início da reportagem, por exemplo, afirma que foi ‘abandonada’ pela família na cadeia por não ter atendido suas expectativas enquanto mulher.
Natália Corazza Padovani, antropóloga do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu-Unicamp diz que isso ocorre porque a criminalidade é pensada a partir de noções de masculinidade, assim como a força e o trabalho, enquanto a feminilidade é vinculada à doçura e domesticidade.
Não que a sociedade aceite ou amenize os crimes cometidos por homens. A explicação, segundo a especialista, é que existe uma diferença na forma como eles são encarados em relação às mulheres e isso tem um peso importante na forma como as famílias passam a se relacionar com as infratoras.
“Socialmente, quais são as expectativas que se tem com relação aos homens? Ou que eles são trabalhadores ou o inverso do trabalho que, historicamente, a gente atribui ao crime. É assim que a gente organiza a realidade […] Quais são as expectativas que se atribuem socialmente às mulheres? Que elas sejam boas mães, que elas sejam boas mulheres. O cometimento de um crime é uma ruptura dessa expectativa”, comenta.
Duplamente punidas, embora seus crimes sejam ‘menos graves’
Pior ainda, ressalta a professora, é que na maioria dos casos essas mulheres sofrem represálias implícitas por crimes que não costumam gerar tanta revolta popular, diferentemente do que ocorre com os homens.
Até julho do ano passado, dos 719.283 crimes aos quais as pessoas presas eram condenadas ou respondiam judicialmente, 324.660 eram considerados violentos e graves, como homicídio, latrocínio, estupro, roubo qualificado e sequestro.
Desses, apenas 9,1% tinham mulheres como autoras ou suspeitas, isto é, 300.590 mil foram cometidos por homens. “Então, assim, não dá para a gente dizer que essas mulheres estão presas porque são uma ameaça à sociedade”.
“A maioria delas praticou crime sem violência ou grave ameaça. Esses crimes são relacionados [muitas vezes] ao tráfico de drogas. E a gente sabe que o tráfico de drogas, muitas vezes, é uma estratégia de sobrevivência para mulheres de baixa renda com filhos”.
Mulheres recorrem ao tráfico como forma de sustento
O Sisdepen aponta que as 23,5 mil mulheres presas no período foram responsáveis por 24,2 mil incidências consideradas hediondas ou equiparadas. Dessas, 20,4 mil estavam relacionadas ao tráfico de drogas o que, para Natália Corazza Padovani, antropóloga do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu-Unicamp, evidencia um comportamento específico no perfil criminal desse público.
“Se a gente for pensar o que é o tráfico de drogas no varejo, esse crime é aquele que é também uma forma de subsistência que você pode fazer em casa. É um tipo de trabalho que possibilita que você esteja na sua casa com algum arranjo de cuidado de crianças, que você ganhe muito mais do que outras formas de trabalho, como por exemplo, faxina, entre outras”.
“Quando a gente coloca [que o tráfico] é equiparado ao crime hediondo, coloca essas mulheres numa situação de penalidade, ainda que elas tenham participado da base última da distribuição do mercado de drogas, enrolando o papelote com cocaína ou levando de um bairro para outro”.
Mães encarceradas, filhos desamparados
Com a ausência das mães presas, os filhos sofrem. Crianças e adolescentes são obrigados a viver momentos importantes da vida na companhia de outros familiares que, em alguns casos, sequer vão entender a relevância daquelas situações ou suprir suas necessidades mais básicas.
A especialista esclarece que as mulheres que cometem crimes devem, sim, cumprir penas, mas há particularidades em suas relações familiares que devem ser levadas em consideração, como a própria maternidade e o sustento de seus dependentes, por exemplo.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu habeas corpus coletivo para determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar de gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência, em todo o território nacional.
No entanto, Fernanda diz que essa medida não ocorre na prática. Nem toda mulher presa preventivamente consegue a substituição da pena, pois isso ainda depende da decisão do juiz. Além disso, ela defende que o benefício seja estendido para outras situações.
“A gente tinha que ter um movimento para que as mulheres, mesmo depois de condenadas, pudessem cumprir a pena num regime diferenciado ou para que essa pena fosse convertida numa pena que não privativa de liberdade, porque a mulher tem a primazia nesse trabalho de cuidado”.
Visitas virtuais tentam amenizar saudade
O baixo número de visitas fez com que a Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu deixasse de abrir as portas aos sábados e domingos. Atualmente, os familiares que desejarem rever uma detenta só têm o domingo como opção. Os sábados, por outro lado, passaram a ser reservados para visitas virtuais, programa disponibilizado pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) em São Paulo.
“[O projeto busca] esse vínculo familiar, o fortalecimento, a manutenção, principalmente com as mulheres que são mães, para que não se perca o vínculo com os filho. A gente também entende a dificuldade dos familiares que são guardiões dessas crianças. Com a dificuldade econômica, com a distância”, explica Carolina Maracajá, presidente do Comitê da Mulher Presa e Egressa.
Durante a pandemia, as visitas virtuais permitiu que presos, independentemente do gênero, mantivessem contato com suas famílias. Com o retorno do contato presencial, considerando a discrepância no número de visitas das populações femininas e masculinas, o programa foi retomado apenas para elas.
Em janeiro desse ano foram 335 videochamadas na unidade. No estado foram 15,5 mil. “As visitas são semanais. A gente tem um método de agendamento que é pelo site e essas visitantes elas têm que estar no rol de visita. Passa pela mesma triagem das visitas presenciais. […] Aí os agendamentos ficam para as visitas virtuais, que duram 10 minutos”.
Embora o abraço não seja uma opção, esse tipo de visita acaba sendo uma alternativa para quem quer matar a saudade. “A visita é uma das ferramentas para a reintegração, para a inserção com o vínculo. É uma ferramenta fundamental para a reintegração social. Então, a gente preserva e luta para que esses vínculos se fortaleçam, se mantenha enquanto a pessoa está encarcerada”.
*Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas, que preferiram não se identificar.
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