CNU: câncer e parto durante curso de formação fazem candidatos temerem perda de vaga no concurso


Gestantes com parto previsto para o mesmo período do curso de formação e paciente em tratamento de leucemia querem o direito de assistir aulas à distância. Responsável por um dos cursos diz que edital não prevê flexibilização e que seria privilégio. Três mulheres conseguiram liminar para assistir a aulas gravadas após o parto. CNU: Câncer e parto no curso de formação fazem candidatos temer perda de vaga no concurso
A previsão de parto do filho de C.S. é 8 de maio, mas o curso de formação para o cargo de auditora fiscal do trabalho, a última das etapas antes da posse como candidata aprovada no Concurso Nacional Unificado (CNU), fez com que ela decidisse induzir o parto normal para antecipar o nascimento do bebê em duas semanas.
A decisão é considerada pela própria gestante uma “violência tremenda”, mas foi a única forma que encontrou para garantir a conclusão do curso de formação e fazer a prova final sem correr o risco de dar à luz no dia do exame.
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Ela está entre as cinco gestantes ou puérperas e um paciente oncológico ouvidos pelo g1 que temem não tomar posse dos cargos em que foram aprovados no CNU, porque os editais dos cursos de formação não preveem flexibilização das aulas presenciais, nem uma data para a segunda chamada da última prova, mesmo em casos como parto ou doença grave.
“Eu estudei muito para passar. Agora, fico entre o cargo dos meus sonhos e o meu bebê. É uma ansiedade sem fim”, disse a gestante.
As cinco mulheres pediram para não ter o nome revelado, porque temem represálias. Três delas foram aprovadas para o cargo de auditoras fiscais do trabalho, assim como Gamaliel Victor de Andrade, diagnosticado com leucemia linfóide aguda em outubro de 2024. No dia 13 de fevereiro, ele fez o transplante de medula.
Gamaliel Victor de Andrade fez um transplante de medula e teve que viajar para Brasília seis dias depois de receber alta
Arquivo pessoal
🔍 O curso de formação é a última etapa do CNU e tem caráter eliminatório. Seu objetivo é transmitir os conhecimentos técnicos e práticos necessários ao exercício do cargo. Para garantir que o futuro servidor esteja preparado para a função, provas são aplicadas ao longo do curso. O candidato precisa ter 75% de presença e média mínima de 70% dos pontos nas provas.
O curso de formação para auditor fiscal do trabalho é oferecido pelo Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe). Começou no dia 31 de março e termina no dia 4 de maio, com a aplicação da última prova.
Em nota, o Cebraspe disse que “segue estritamente as regras contidas nos editais” e que “não há previsão para flexibilização do formato [das aulas], que deve acontecer de forma presencial”.
Enquanto o impasse fez C.S. decidir antecipar o parto, L.T. torcia para que seu bebê ficasse 12 dias a mais na barriga e nascesse depois da prova final, o que não aconteceu. O parto normal foi no dia 23 de abril, em Brasília.
A gestante mora no interior do Rio Grande do Sul e teve que mudar todo o plano de parto nas últimas semanas da gestação para fazer o curso presencial na capital federal, onde o filho nasceu.
Essa é a mesma situação da terceira mulher ouvida pelo g1. Ela também entrou em trabalho de parto alguns dias depois da entrevista. Estava na sala de aula quando começou a sentir as contrações, mas esperou até o início do turno da tarde para assinar a lista de frequência e não perder a presença na aula.
Segundo uma obstetra e um oncologista entrevistados pelo g1, tanto as mulheres quanto o paciente em tratamento de leucemia precisam de cuidados específicos e não deveriam ser obrigados a assistirem as aulas presenciais.
Liduína Rocha, coordenadora da residência em ginecologia e obstetrícia da Escola de Saúde Pública do Ceará, disse que o puerpério é o período de, no mínimo, 42 dias após o parto, em que acontecem mudanças hormonais que interferem na adaptação de uma nova rotina. “Por isso, esse período deve ser bastante protegido. A mulher precisa de tranquilidade, serenidade e cuidado”, afirmou a médica.
O médico Lucyo Diniz, coordenador do setor de oncohematologia do Hospital Regional de Juazeiro da Bahia, explicou que, depois do transplante de medula, é como se o paciente nunca tivesse tomado uma vacina. “Ele tem o sistema imunológico resetado. Por isso, os primeiros 100 dias são muito críticos, tanto para reativação de infecções, quanto pelo risco de rejeição”, explicou.
Insegurança e ansiedade
As outras duas gestantes que falaram com o g1 foram aprovadas para o cargo de analista técnico de políticas sociais, cujo curso de formação é oferecido pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
A entidade informou que preza para que as candidatas grávidas, puérperas e lactantes possam finalizar os cursos de formação e que providenciou os meios para garantir isso.
“Caso sejam necessários mais dias de afastamento, por motivos médicos, como complicações gestacionais, as candidatas deverão apresentar a solicitação com atestado médico para análise do caso concreto”, disse em nota.
24 pessoas com problemas para concluir os cursos
Em 27 de março, a Condsef enviou um ofício para vários órgãos do governo federal, entre eles o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), responsável pelo CNU, e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
A Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público (Condsef) enviou no dia 27 de março um ofício para vários órgãos do governo federal cobrando soluções e listando os nomes de 24 gestantes, lactantes, puérperas e pessoa com doença grave que estariam impossibilitadas de fazer o curso de formação presencial.
A principal reivindicação da entidade é que o Cebraspe e a Enap ofereçam a modalidade de curso à distância para esses casos, garantindo o direito dos aprovados de tomarem posse.
“Equidade pressupõe a criação de condições de adaptação a situações específicas”, defende Mônica Carneiro, diretora de imprensa da Condsef.
Para Mônica, a análise prévia dos casos concretos, e não após os partos, seria uma medida importante para dar segurança jurídica e tranquilidade psicológica às candidatas. “Isso não foi feito até o momento. Não temos conhecimento da instalação do grupo de trabalho que irá analisar os casos. As respostas são evasivas e geram ansiedade”, disse a diretora.
Estre os órgãos que receberam o documento estão o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), responsável pelo CNU, e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Procurado pelo g1, o Ministério da Gestão encaminhou a demanda para o Ministério do Trabalho, que não respondeu.
Volta às aulas seis dias após o parto
Para atender as regras do edital do Cebraspe, algumas mulheres teriam que voltar às aulas seis dias após o parto para não ultrapassar o limite de faltas, o que pode comprometer sua recuperação. Já pelo edital da Enap, que permite 30% de faltas, as mulheres teriam que voltar 16 dias depois.
Além disso, elas ainda precisariam torcer para que seus filhos não nasçam no dia da última prova, porque o edital não deixa claro se haverá segunda chamada nesses casos.
A obstetra Liduína Rocha alerta que impor compromissos nesse período configura violência obstétrica institucional. Uma das candidatas afirma que não pretende voltar tão cedo e pede ao menos 30 dias entre o fim das aulas e a segunda chamada da prova para poder acompanhar o conteúdo.
“Sem isso, as condições serão difíceis, porque não vou conseguir assistir 8 horas diárias de aulas nos dias seguintes ao parto”, afirma a gestante.
‘Sinto que todo meu esforço foi em vão’
Gamaliel Andrade, que passou por um transplante de medula em fevereiro, precisou viajar de São Paulo a Brasília para acompanhar aulas presenciais exigidas pelo edital, mesmo ainda em recuperação. Dias depois, foi internado com insuficiência renal e acredita que as viagens agravaram seu estado de saúde.
“Agora, eu sinto como se todo o meu esforço tivesse sido em vão. Sinto que, em razão de uma situação imprevisível e inevitável, eu posso ser excluído do concurso”, desabafa Andrade .
O oncologista Lucyo Diniz confirma a impressão do paciente. “Nada na medicina reduz mais a imunidade do que um pós-transplante de medula óssea. Em dois meses, não orientamos que a pessoa saia da cidade. Qualquer viagem pode agravar o quadro”.
Aprovados recorrem à justiça
Sem respostas das instituições, alguns aprovados recorreram à Justiça para evitar a eliminação por faltas. Pelo menos três gestantes conseguiram liminar do Tribunal Regional Federal da 1ª Região garantindo reposição de aulas e segunda chamada de provas.
Uma decisão de 2018 do Supremo Tribunal Federal (STF) considera que mulheres grávidas podem remarcar o teste de aptidão física em concursos que o exijam, “independentemente da previsão expressa em edital”. Isso tem embasado pedidos de liminares em outros tipos de concurso.
Mesmo com a liminar, as candidatas ainda dependem de negociação com o Cebraspe, que alegou ao Ministério Público Federal que flexibilizar as regras seria dar “tratamento privilegiado”.
“Eles se mostram tão insensíveis, que tenho medo que isso se prolongue demais”, disse C.S. “Privilégio tem quem não corre o risco de ser eliminado por causa de um filho — os homens. Todas nós só queremos condições para fazer o processo sem prejuízos pela maternidade”, afirmou a gestante.
Em nota, o Cebraspe disse que as decisões judiciais são cumpridas em sua integralidade e o Enap alegou que as candidatas grávidas, puérperas e lactantes já têm acesso ao que foi determinado pela Justiça.
‘Ônus excessivo à administração pública’
Aplicação de provas do CNU
Reprodução
Gamaliel teve seu pedido negado, mas pelo Superior Tribunal de Justiça. Segundo o ministro Francisco Falcão, ofertar o curso de formação na modalidade de ensino à distância “poderia acarretar em ônus excessivo à administração pública”.
O Estatuto da Pessoa com Câncer, sancionado em 2021, assegura condições de igualdade, o respeito à dignidade, à cidadania e à inclusão social desses pacientes. É com base nisso que Gamaliel afirma que o edital deveria ter previsto uma forma de permitir que ele conciliasse o curso de formação com o meu tratamento médico.
“Eu consegui o mais difícil, que foi um doador compatível e o sucesso do transplante. Nunca pensei que o maior obstáculo seria um edital discriminatório”, disse Gamaliel.
No dia 16 de abril, a Defensoria Pública da União protocolou uma ação civil pública em favor das candidatas gestantes, puérperas, lactantes, mães de crianças com deficiência e dos candidatos com limitações significativas à locomoção, portadores de doenças graves ou pessoas em situação de imunossupressão.
A ação, que ainda não foi julgada, pede que sejam disponibilizadas as aulas virtuais para essas pessoas; o abono integral das ausências, sem o limite de 25% de faltas; além da realização das provas em datas alternativas, de forma presencial ou remota.
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