Os brasileiros se cansaram de servir aos políticos

‘A impressão que se tem é a de que as autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sempre encontram uma maneira de tirar um pouco mais dos cidadãos’, diz Nuno VasconcellosReprodução/Youtube

Muita gente acredita — e em alguns países do mundo isso até pode ser verdade — que o Estado existe para servir à sociedade. Dia após dia, no entanto, fica cada vez mais claro que esse princípio não se aplica a todos os lugares. No Brasil, por exemplo, a sociedade é que parece existir para servir ao Estado. A impressão que se tem é a de que as autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sempre encontram uma maneira de tirar um pouco mais dos cidadãos e não estão nem aí para os efeitos das decisões que tomam em seu próprio benefício.

Isso mesmo. Uma demonstração eloquente nesse sentido é uma tentativa de acordo que vem evoluindo a passos acelerados na Câmara dos Deputados e que, teoricamente, se destina a atender a uma exigência do Supremo Tribunal Federal. A situação é a seguinte: em agosto de 2023, o STF, atendendo a uma solicitação do estado do Pará, determinou que a Câmara, para as eleições de 2026, redistribua o número de assentos no plenário levanto em conta a proporcionalidade da população de cada estado medida pelo Censo Demográfico de 2022. Isso acarretaria a alteração do número de representes de algumas bancadas. Algumas perderiam. Outras, ganhariam deputados. No final, a Casa permaneceria com os mesmos 513 parlamentares.

MODELO DA DITADURA

‘No Brasil, por exemplo, a sociedade é que parece existir para servir ao Estado’, afirma Nuno VasconcellosReprodução

Antes de falar da nova configuração, convém tecer algumas considerações sobre o tamanho atual das bancadas. Ela segue os critérios enviesados de proporcionalidade impostos pelo governo militar no Pacote de Abril de 1977 — quando o general Ernesto Geisel, preocupado com o avanço eleitoral da oposição nos estados mais desenvolvidos, resolveu criar um mecanismo que garantisse na marra a maioria no parlamento do partido de sustentação do governo, a Arena. Além de criar os senadores biônicos, eleitos pela via indireta, impôs uma fórmula de preenchimento das 420 cadeiras que a Câmara tinha na época simplesmente reduzindo a representação dos estados do Sudeste, onde a tendência oposicionista era mais acentuada, e aumentando as bancadas dos pequenos estados — sempre mais fiéis ao governo de ocasião.

Por conveniência da maioria dos parlamentares (e não da sociedade brasileira), o modelo sobreviveu à redemocratização. E o número de deputados foi sendo ampliado até parar, já nos anos 1990, nos atuais 513 parlamentares. A distorção básica foi mantida e o voto dos eleitores dos estados menores permaneceu valendo muito mais do que o dos cidadãos dos estados maiores.

Numa conta básica, considerando-se o número de eleitores de cada unidade da Federação e o tamanho das bancadas na eleição passada, de 2022, enquanto foram necessários 366 mil paulistas e 205 mil fluminenses para formar o coeficiente para eleger um único deputado federal, esse número caiu para 54 mil eleitores no Amapá e apenas 37 mil em Roraima. Isso faz com que, numa conta rasa, o voto de um eleitor em Roraima valha dez vezes mais do que valeria em São Paulo. Uma democracia que zela pelo nome que carrega e leva ao pé da letra o princípio de que todos são iguais perante a lei, jamais permitiria uma distorção como essa.

A resposta a quem ousa apontar esse tipo de distorção deixa claro o populismo que orienta a política brasileira. Quem defende o modelo imposto pela Ditadura Militar atribui ao cálculo que dá mais peso aos estados de menor densidade populacional é reduzir as desigualdades regionais. Pura balela! Por definição, a Casa encarregada de defender os interesses das unidades da Federação é o Senado. Ali, cada estado e mais o Distrito Federal, independentemente do tamanho de sua população, conta com três representantes. À Câmara, a princípio, cabe representar o povo — e, para fazer isso direito, o voto de um eleitor do Rio de Janeiro deveria ter o mesmo peso de um eleitor do Acre, do Amapá, de Roraima ou dos outros estados beneficiados pela legislação.

527 DEPUTADOS FEDERAIS

Câmara dos DeputadosPablo Valadares/Câmara dos Deputados

Seja como for, e sem mencionar a necessidade de corrigir essa distorção, o STF exigiu que a Câmara se adequasse à realidade populacional do último censo. Pelo novo critério, o Estado que mais perderia cadeiras seria o do Rio de Janeiro — que veria sua bancada se reduzir dos atuais 46 para 42 deputados. Os que mais ganhariam seriam o Pará, que iria de 17 para 21 e Santa Catarina, que pularia de 16 para 20 parlamentares.

Acontece que os deputados, criativos como sempre, tiveram uma ideia que, para eles, deve ter parecido genial! Ao invés de tirar de uns e dar cadeiras para outros, resolveram alcançar o equilíbrio pelo aumento da quantidade de deputados. Isso mesmo! O novo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos/PB), assim que o carnaval passar, tentará encaminhar um acordo para cumprir a decisão do STF. Ao invés de redistribuir as bancadas pelos mesmos 513 assentos previstos na lei atual, ele pretende ampliar para 527 a quantidade de representantes na Casa.

Apenas a título de comparação: os Estados Unidos têm uma população de mais ou menos 350 milhões de habitantes — enquanto a do Brasil é de pouco mais de 200 milhões. Enquanto o país norte-americano conta com 50 estados, o Brasil tem 26 estados e o Distrito Federal. Ainda assim, e enquanto o Brasil fala em aumentar a bancada para 527 deputadas e deputados, os Estados Unidos seguem firmes com seus 435 representantes.

REALOCAÇÃO DE GASTOS

Os defensores do aumento do número de cadeiras insistem numa linha de argumentação que insulta a inteligência de qualquer cidadão que se preocupe com o peso do Estado gastador nas costas da sociedade contribuinte. Para começo de conversa, eles juram de pés juntos que os novos 14 parlamentares que terão lugar na Casa não terão qualquer impacto sobre os gastos públicos.

Segundo Suas Excelências, o Orçamento do Poder Legislativo cobrirá os salários dos novos deputados e de seus assessores, bancará a gasolina de seus carros, pagará as passagens aéreas que eles usam para “retornar às suas bases” e cobrirá as despesas que os deputados sempre dão um jeito de inventar. Para eles, não haverá, aumento, apenas a realocação de gastos que já estavam previstos.  

Antes de cair na gargalhada com essa anedota de gosto duvidoso, basta fazer uma conta simples para constatar que esse argumento não se sustenta. Cada um dos 14 novos deputados terá, assim como os 513 atuais, o direito de apresentar emendas individuais impositivas. São aquelas de pagamento obrigatório pelo Caixa Federal, sem qualquer discussão ou fiscalização, no valor de R$ 37,9 milhões por ano — ou mais de R$ 150 milhões ao longo do mandato. Esse dinheiro, como se sabe, não sai do orçamento do Legislativo, mas da parte do Orçamento da União destinada a investimentos. Portanto…

Seja como for, os deputados não parecem preocupados com os efeitos das decisões que tomam sobre a imagem do poder que exercem. Fechados numa bolha que os isola do mundo, dentro da qual as decisões são tomadas com os olhos voltados para os próprios interesses — e não para os da população que, por definição, deveriam representar —, eles agem como se a população não enxergasse as manobras que executam para aumentar seu acesso ao dinheiro público.

Em defesa do Poder Legislativo, diga-se que os senhores deputados não são os únicos que não demonstram preocupação diante dos efeitos das decisões que tomam sobre a imagem do poder que exercem. Nem com sua reputação perante o cidadão que, no final das contas, é quem financia os benefícios dos quais eles desfrutam. O mesmo vale, por exemplo, para o Poder Judiciário.

Na terça-feira passada, o ministro José Antônio Dias Toffoli, do STF, derrubou uma decisão do Tribunal de Contas da União, que havia proibido a regalia que confere aos magistrados brasileiros aumentos de 5% sobre os salários a cada cinco anos de serviço — o chamado quinquênio. Atenção: o quinquênio não é prêmio por produtividade nem bônus por desempenho! Trata-se única e simplesmente de um acréscimo automático sobre os salários, que os juízes, por decisão da própria categoria, resolveram se atribuir em determinado momento.

Numa decisão tomada em 2006 com a intenção de pôr um freio a essa regalia, o Conselho Nacional de Justiça proibiu o quinquênio. No ano passado, voltou atrás e liberou o benefício — com efeito retroativo. O TCU entrou em cena e proibiu o pagamento. Toffoli, então, derrubou a decisão e autorizou a retomada dos quinquênios, que, pelo valor acumulado, custarão aos cofres públicos mais de R$ 870 milhões apenas no âmbito da Justiça Federal.

O que se discute, aqui, não é a legalidade da decisão nem o impacto negativo de medidas como essa sobre a imagem do Poder Judiciário — mas a sobrecarga que despesas como essa impõem à sociedade. Num país em que a maioria das pessoas sofre com a redução do poder de compra do dinheiro no momento em que voltam a ver seu salário perder a corrida desleal contra a inflação (que tem entre suas causas justamente o aumento dos gastos públicos), decisões como essa têm um efeito devastador sobre o ânimo das pessoas. E faz com que um número cada vez maior de cidadãos (e, portanto, de eleitores) veja o Estado não como um ente que zela por seus interesses, mas como um fardo que todos precisam suportar em troca de serviços públicos de qualidade sofrível.

APOIADOR DE TERRORISTAS

O efeito de medidas como essas é devastador e o desânimo diante delas, inevitável. As pessoas que não têm acesso a esse tipo de privilégio acabam se sentindo abandonadas justamente por aqueles que têm, ou deveriam ter, o poder de tomar decisões que dizem respeito a seus direitos. Não se trata, é bom insistir, de discutir a legalidade das medidas. Mas, sim, de avaliar o impacto dessas atitudes sobre a confiança que a sociedade deposita nas instituições — que abrangem o Legislativo, o Judiciário e, também, o Executivo. Que, assim como os outros dois poderes, não tem conseguido convencer o país de que está preocupado com o que ela pensa ou sente.

Prova disso são os índices decrescentes de popularidade do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na semana passada, enquanto Brasília buscava inverter sua queda de prestígio com ações de marketing e substituição de ministros, uma pesquisa do instituto Quaest indicava que a desaprovação do governo supera 60% nos estados maiores (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais). E que o percentual de aprovação vem despencando em redutos lulistas tradicionais, como a Bahia e Pernambuco.

O governo precisa ficar atento! Num cenário de inflação em alta, gastos desnecessários e popularidade em baixa, todos os integrantes do governo deveriam evitar cometer deslizes capazes de prejudicar ainda mais a situação. Pois foi justamente isso, num gesto aparentemente inocente, que fez a ministra dos Direitos Humanos Macaé Evaristo.

Em um evento sobre Direitos Humanos realizado em São Paulo no dia 20 de fevereiro, Macaé recebeu das mãos de um cidadão chamado Mohamad El-Kadri um Keffieh — aquele lenço quadriculado que compõe a indumentária típica dos palestinos. El-Kadri comanda uma ONG chamada Fórum Latino-Palestino, que zela pelos interesses do Hamas no Brasil.

Ao lado do sorridente defensor dos terroristas, a ministra do governo brasileiro, tão sorridente quanto ele, posou para fotos que circularam pelas redes sociais. Naquele mesmo dia, em Gaza, os estupradores, infanticidas e sequestradores do Hamas encenavam o espetáculo macabro da devolução dos corpos de reféns mortos em suas masmorras depois de arrancados de forma covarde de suas casas no dia 7 de outubro de 2023. A crueldade da cena ficou ainda mais evidente depois de Israel revelar que o caixão que deveria conter o cadáver de Shiri Bibas — mãe das crianças Ariel, de quatro anos, e Kfir, de oito meses, também trucidadas de forma covarde — continha o corpo de outra mulher. A revelação só fez aumentar a repulsa aos terroristas.

No campo privado, Macaé pode posar para fotografias ao lado de quem bem entender. Como ministra, porém, deveria pensar duas vezes antes de se expor a esse tipo de situação. Se deixar fotografar ao lado de El-Kadri — como também já fez o assessor de assuntos internacionais da Presidência da República, Celso Amorim —, num momento como o atual, pode não ajudar a piorar a situação fiscal do país. Mas também não contribui para melhorar a reputação que o governo vê cair a cada dia.

Será que ninguém em Brasília parou para avaliar que parte da erosão do prestígio do governo é consequência, justamente dessa falta de sintonia com o sentimento da população? Será que o apoio aos estupradores do Hamas, assim como a falta de combate aos bandidos que mantêm a sociedade brasileira como refém, também não ajuda a empurrar a popularidade do governo para baixo? São questões que deveriam ser avaliadas com urgência, caso Brasília realmente pretenda recuperar a popularidade perdida, não é mesmo?

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