Alice Caymmi honra o sobrenome ao abrir radiante roda de samba, no Rio, para cantar obra lapidar do avô Dorival


Alice Caymmi na estreia do show ‘Roda Caymmi’ na noite de ontem, 23 de fevereiro, dentro do projeto ‘Manouche no jardim’
Rodrigo Goffredo
♫ OPINIÃO SOBRE SHOW
Título: Roda Caymmi
Artista: Alice Caymmi
Data e local: 23 de fevereiro de 2025 na área externa do Clube Manouche (Rio de Janeiro, RJ)
Cotação: ★ ★ ★ ★
♪ Quando Alice Caymmi veio para esse mundo, em 17 de março de 1990, o cancioneiro do avô – um certo Dorival Caymmi (30 de abril de 1914 – 16 de agosto de 2008) – já estava construído. Pouco foi acrescentado a essa obra lapidar até a jangada do cantor e compositor baiano partir para o mar da imensidão espiritual, quando Alice tinha 18 anos, deixando legado imortal na música do Brasil.
Neta de Dorival, filha de Danilo Caymmi e sobrinha de Dori Caymmi e Nana Caymmi, Alice nasceu e cresceu em uma das mais nobres dinastias musicais do país. Em 2012, quando se lançou para valer como cantora e compositora, após participações em discos e shows da tia Nana, Alice sentiu o peso de ter que honrar o sobrenome. Mas jamais se curvou diante da imponente ascendência.
Alice seguiu a própria cabeça, se conectou com nomes da geração dela e trilhou o próprio caminho com orgulho de ostentar o sobrenome Caymmi, mas sem medo de singrar por outros mares.
Roda Caymmi – show que Alice estreou na noite de ontem, 23 de fevereiro, no projeto Manouche no jardim, criado com curadoria de Alessandra Debs – marca o reencontro da cantora com o repertório do avô dez anos após um show tropicalista dedicado ao cancioneiro do compositor, Dorivália (2014).
Desta vez, Alice armou roda de samba no palco construído em galpão climatizado – erguido na área externa do Clube Manouche e do restaurante Camolese – e cantou as músicas mais conhecidas de Caymmi na cadência do samba, gênero já dominante no cancioneiro de Dorival ao lado das canções praieiras e dos boleros modernos dos anos 1940 e 1950.
Com a pegada enérgica do quinteto formado por André Vercelino (percussão), Luís Barcelos (bandolim), Makley Matos (percussão), Marcos Tadeu (percussão) e Rafael Malmith (sete cordas), Alice Caymmi abriu caminhos com o tema instrumental Toque de Xangô e enfileirou sequência aliciante de sambas de Caymmi em roteiro iniciado por Maracangalha (1956), número seguido por medley que agregou 365 igrejas (1946), Eu cheguei lá (1971) e Eu não tenho onde morar (1960).
Ao mesmo tempo em que cantou os sambas de Caymmi sem enfatizar a baianidade buliçosa da obra do compositor no gênero, Alice tampouco se utilizou do arsenal instrumental que caracteriza o pagode dos quintais cariocas. O que se ouviu no show Roda Caymmi foi samba sem fronteiras geográficas, cantado na maior parte na mesma alta temperatura que esquentou o público em números com Saudade da Bahia (1957) e Lá vem a baiana (1947).
Contudo, houve nuances, como o fraseado do bandolim de Luís Barcelos na introdução de São Salvador (1960) e como os toques dos atabaques que explicitaram a origem baiana do Samba da minha terra (1940).
Dora (1945) requebrou em cadência mais lenta com o canto grave, encorpado e elevado da intérprete no ponto mais alto do show. Oração de Mãe Menininha (1972) foi feita lindamente na cadência do ijexá.
Tema da suíte Histórias de pescadores, a Canção da partida (1957) cruzou o mar na cadência de marcha-rancho, já no bis, após Alice cantar o antológico – e sempre irresistível – samba-enredo com a qual a escola de samba Mangueira celebrou Dorival Caymmi no Carnaval de 1986, Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm (Ivo Meirelles, Paulinho Carvalho e Lula, 1985).
Sentada no centro da roda ao lado dos músicos, ou de pé, Alice caiu radiante no samba de Dorival, trazendo toda a manemolência sensual de temas como Vestido de bolero (1944), A vizinha do lado (1946) e Rosa morena (1942), odes de Caymmi à beleza feminina. O show transcorreu vibrante, por vezes linear, mas sempre caloroso.
O mar estava para samba quando Alice Caymmi fez Milagre (1977) e saudou Iemanjá em Dois de fevereiro (1957). Com jogo de corpo aplaudido pelo público, a artista mexeu as cadeiras para temperar Vatapá (1942) com o movimento circular das mulheres que mexem as colheres no preparo do quitute baiano.
Mesmo que tenha havido inevitáveis interseções nos roteiros dos shows Dorivália e Roda Caymmi, como Modinha para Gabriela (1975) e O que é que a baiana tem? (1939), ficou claro que os conceitos dos shows são bem distintos. Se Dorivália tinha até certo peso roqueiro, Roda Caymmi cai mesmo é no samba que dita o ritmo de músicas como Você já foi à Bahia? (1941) e Acontece que eu sou baiano (1944).
A caminho dos 35 anos, a serem festejados em março, Alice Caymmi canta Dorival com a segurança de já ter feito o próprio nome na música brasileira do século XXI sem se escorar na nobre dinastia a que pertence. É pela luz própria da cantora que a Roda Caymmi de Alice soa tão radiante, fazendo a artista honrar o sobrenome de forma natural.
Alice Caymmi canta 22 músicas de Dorival Caymmi (1914 – 2008) em roteiro aberto pelo ‘Toque de Xangô’
Rodrigo Goffredo
♪ Sem duas músicas previstas (mas cortadas) no bis, A preta do acarajé (1939) e Vou ver Juliana (1972), eis o roteiro seguido em 23 de fevereiro por Alice Caymmi, com o cancioneiro de Dorival Caymmi (1914 – 2008), na estreia nacional do show Roda Caymmi no projeto Manouche no jardim, na área externa do Clube Manouche:
1. Toque de Xangô (introdução)
2. Maracangalha (1956)
3. 365 igrejas (1946) /
4. Eu cheguei lá (1971) /
5. Eu não tenho onde morar (1960)
6. Saudade da Bahia (1957)
7. Lá vem a baiana (1947)
8. Dora (1945)
9. São Salvador (1960)
10. Milagre (1977)
11. Vestido de bolero (1944)
12. A vizinha do lado (1946)
13. Rosa morena (1942)
14. Dois de fevereiro (1957)
15. Vatapá (1944)
16. Modinha para Gabriela (1975)
17. Samba da minha terra (1940)
18. Acontece que eu sou baiano (1960)
19. Você já foi à Bahia? (1941)
20. O que é que a baiana tem? (1939)
21. Oração de Mãe Menininha (1972)
22. Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm (Ivo Meirelles, Paulinho Carvalho e Lula, 1985) – Carnaval de 1986
Bis:
23. Canção da partida (1957)
Alice Caymmi arma roda de samba, com cinco músicos, para dar voz ao cancioneiro do avô, Dorival Caymmi (1914 – 2008)
Rodrigo Goffredo
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