Após 138 anos no esquecimento, 1ª ópera de compositor negro ganha estreia

Por um breve momento, um silêncio caiu sobre os bancos da famosa Catedral de St. Louis, em Nova Orleans, nos Estados Unidos, enquanto a capela se enchia de uma sensação coletiva de que o público estava prestes a testemunhar a história.

Eles foram os primeiros a ouvir a ópera “Morgiane” do compositor Edmond Dédé – a mais antiga ópera completa conhecida feita por um negro norte-americano – mais de um século depois que ele compôs a obra.

Acreditava-se que a partitura estava perdida, mas uma descoberta casual do manuscrito nos arquivos da Universidade de Harvard apresentou uma oportunidade de adicionar o nome de Dédé ao cânone dos compositores americanos.

As notas de abertura da ópera encheram a mesma catedral onde Dédé foi batizado em 1828 durante uma apresentação de pré-estreia na sexta-feira (31). A ópera fará sua estreia mundial esta semana em Washington, DC, Maryland e Nova York.

“É com grande orgulho e humildade que gostaria de dizer bem-vindo ao lar, Edmond Dédé, bem-vindo ao lar”, disse Givonna Joseph, cofundadora da OperaCréole, uma organização sem fins lucrativos que visa descobrir e levar ao palco as obras de compositores negros de Nova Orleans do século XIX.

“Morgiane” é uma ópera cômica que conta a história de uma jovem que é sequestrada e forçada a um noivado com um sultão, e a tentativa de sua mãe de resgatá-la.

Joseph disse à CNN que ela estava entre as dezenas de pessoas que passaram anos adaptando o manuscrito de suas notas originais do século XIX para notações musicais modernas.

Patrick Dupre Quigley, o maestro da ópera, descreveu a obra de Dédé como “a ópera mais importante nunca ouvida”. Ou seja, até agora.

“Há essa história que contamos de que pessoas negras estão apenas agora se tornando parte da linha do tempo da música clássica”, disse Quigley. “E a realidade é que nos Estados Unidos – na pessoa de Dédé – os negros [já] estavam participando da música clássica.”


Um retrato do compositor Edmond Dédé • Domínio Público

Era de ouro da ópera de Nova Orleans

Dédé cresceu em uma Nova Orleans que ressoava com os bel cantos da ópera, muito antes de a cidade se tornar o berço do jazz.

Ao longo do século XIX, Nova Orleans foi o principal destino do país para apresentações de ópera, com compositores italianos como Vincenzo Bellini e Gioachino Rossini encenando suas estreias americanas em teatros no French Quarter da cidade.

Dédé nasceu durante esta época musical em 1827, filho de pais que eram negros americanos livres. Ele aprendeu música com seu pai, estudou com compositores negros qualificados em Nova Orleans e foi reconhecido por sua proeza musical desde cedo, disse Candace Bailey, uma musicóloga que pesquisa música do século XIX nos Estados Unidos com foco no Sul.

Os talentos de Dédé cresceram à medida que o país se encaminhava para a Guerra Civil e os direitos dos negros livres se tornaram mais restritos, disse Bailey. À medida que as tensões aumentavam sobre a escravidão, Dédé acabou fugindo para a França.

Foi lá que Dédé atingiu o auge de sua carreira. O compositor ocupou uma posição de prestígio escrevendo e regendo no Grand Théâtre em Bordeaux, e escreveu inúmeras peças, afirmou Bailey.

Ele também foi um abolicionista que nunca esqueceu a situação dos escravizados nos Estados Unidos e nas colônias ao redor do mundo. “Ele pertencia ao Institute d’Afrique, que era um grupo de homens de todo o mundo que trabalhavam para abolir a escravidão”, comentou Bailey.

Em 1887, Dédé completou a partitura para sua grande ópera “Morgiane”. O manuscrito abrange dois volumes com mais de 500 páginas de notações para cada instrumento da orquestra. Mas o compositor não viveria para ver o trabalho de sua vida se concretizar.

O esforço colossal para transcrever a obra de Dédé

Após sua morte em 1901, “Morgiane” de Dédé – como muitos manuscritos de compositores negros do século XIX – desapareceu, até que, por acaso, pesquisadores descobriram uma cópia da partitura nos arquivos de Harvard.

Mas encontrar o manuscrito foi apenas o início de uma busca de décadas para encenar a ópera. Ao longo dos anos, vários pesquisadores e músicos tentaram transcrever o manuscrito, mas foi somente com a pandemia de Covid-19 que Joseph, Bailey e Quigley começaram a trabalhar juntos.

Quigley, que também é o diretor artístico designado da Ópera Lafayette, sediada em Washington, disse que descobriu Dédé e “Morgiane” em 2020 e decidiu encenar a ópera em homenagem à temporada do 30º aniversário da companhia.

Segundo Quigley, ele passou anos trabalhando com várias pessoas, incluindo arranjadores, editores e músicos, que decifraram cada nota de cada instrumento da orquestra, transcreveram o libreto francês, ou songbook, e combinaram as letras para, finalmente, criar a partitura.

Para complicar ainda mais as coisas, muitos instrumentos musicais evoluíram desde o século XIX. Os violinos, por exemplo, agora usam cordas de metal em vez de feitas de tripa animal, e alguns dos instrumentos observados na partitura original não são mais usados por orquestras modernas.

Para a próxima estreia mundial, a orquestra se apresentará com instrumentos usados no século XIX ou aqueles que foram adaptados para imitar seu som, reforçou Quigley. “Estamos nos tornando cada vez mais autênticos ao mundo sonoro que Edmond teria composto para esta peça. Nosso objetivo é sermos os colaboradores mais fiéis possíveis da equipe original [de Dédé]”, disse.

Uma chance de consolidar seu legado na América

Para a equipe de músicos, historiadores e artistas que trazem a ópera de Dédé para o palco, as apresentações são mais do que apenas dar ao compositor suas flores há muito esperadas.

Kenneth Kellogg, que interpreta o sultão, disse que não hesitou em assumir o papel porque, como um homem negro, era uma chance de reconhecer as contribuições de artistas afro-americanos para a música clássica.

“Pelo bem histórico e pela posteridade — e pelo que isso significa para a cultura e para Dédé — estou totalmente a bordo”, falou o cantor de ópera baixo.

“Mas também havia uma sensação de tristeza. Em todos os meus anos estudando música… A história de Dédé nunca surgiu.”

Não está claro por que os registros de muitas das obras de Edmond Dédé foram perdidos ao longo dos anos ou qual papel o racismo pode ter desempenhado no apagamento de suas contribuições ao gênero clássico.

A performance também assumiu um novo significado em meio aos ataques à diversidade e inclusão e aos esforços para reconhecer a história negra, completou Joseph.

Há “preocupações sobre tirar coisas dos livros de história”, comentou Joseph, “e conseguimos colocar isso diante do público neste momento realmente importante”.

Embora o nome de Dédé e sua grande ópera tenham se perdido para a história uma vez, Quigley disse que eles se recusam a deixar que isso aconteça novamente.

“Este é o nosso patrimônio cultural que perdemos por causa de um momento terrível em nossa história. Devemos ouvir isso porque, se não o fizermos, não estaremos dialogando com nossa cultura [americana]”.

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Este conteúdo foi originalmente publicado em Após 138 anos no esquecimento, 1ª ópera de compositor negro ganha estreia no site CNN Brasil.

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